Umbrais do tempo



Ao pai, aos filhos



Depois o pai estendeu a mão

e pôs a alma em lentidão

para beber da transparência

de uma água envidraçada.


E eu disse algo breve.

E ele não me teve por perto.


E houve um tremor terrível

na mão do pai.


Depois o filho mais velho,

vasto de adolescente coragem,

disse que queria ser psicólogo.

Poderia clinicar logo ali,

na hora da decisão.

Mas ele não viu meus olhos

devastados e vazios.

E ele era belo em tudo que dizia

e até no longo silêncio que se seguia.


Depois o pai rasgou brutalmente a fralda

que formalmente abrigava seus culhões e seu pau.

Parte se sua heróica história também se perdia

naquele observado e sabido momento

para o difícil esquecimento.

Então eu, ouvindo e sofrendo a partição,

pus-me a trabalhar sem sentir.

Eu era apenas um filho de um pai.

E ele esperava com os olhos ao chão,

seminu e infantilmente calado.

E tendo as partes protegidas,

o pau grande e de todo amolecido e coberto,

parte irrisória de múltiplos e de lentos falecimentos,

ergueu a face com muito antiga dignidade.

Caminhou sobre o trilho

dos dias últimos

em direção à poltrona em frente à TV.

Esquecido fiquei no quarto,

olhando paredes brancas, nuas e silenciosas.


Do vazio emparedado

surgiu a imagem da mãe, da minha mãe, de mamãe.

Eram imagens de quarenta, vinte, dez anos atrás,

todas misturadas aos gestos e falas doces e ferozes.

E ainda havia aquele riso, aquela alegria descabida,

aquele olhar molhado de ternura,

aquele silêncio congelado de terror,

aquela candura doentia,

aqueles beijos fadados à eternidade,

aquele ser de amor e de ternura infinitos,

aquela coisa humanamente inexplicável,

aquela prova de imperfeita

divindade em carne e osso.


E desejei estar morto para não sentir.

E o pai estava sentado enquanto

recebia coisas da TV.

E nada sentindo sobre antiguidades.


Depois o filho mais novo

ficava brevemente parecido

com meu rosto sério e triste.

E eu olhava cada cantinho

onde nasceriam rugas e passados

em seu rosto de quase menino.

E, subitamente, num tímido riso,

explodia toda sua graça guardada.


Depois os dois filhos nunca me perguntaram

onde eu havia nascido.

Respondi mesmo assim

que se passara num casarão,

num pequeno palácio de negros e ricos avós,

netos de escravos bem maltratados.

Nasci à beira de um rio

numa Laje pequena e quase bucólica.

E então os filhos, pressentindo meu pensar,

olharam-me vagamente de relance.

E me esqueceram rápida e lindamente.


Depois o pai disse que ia dormir

porque a vista estava cansada.

E vontade tive muita

de falar do meu cansaço

e de coisas alheias ao pai.

.

E então coberto e sob bênçãos,

sabe-se lá de onde e de quem,

disse: boa noite, meu filho.

E eu disse: boa noite, meu pai.

E ele disse que toda noite,

na hora da reza,

orava por mim,

diante do seu estranho

e temido e amado Deus,

que era, no amor e no medo,

quase meu, também.

E eu orava todas as noites

para acreditar na oração.

Havia, pois, um Deus entre nós.

Havia, pois, um Pai maior

entre eu e meu pai menor.

Mas ele, o menor, havia sido

tão gigante por tanto e tanto tempo...

E o pai esquecia que esquecia tantas coisas.

Eu esquecia que Deus existia.

Deus se esquecia de nós dois.

E tudo era muito certo em si mesmo.

E então ficávamos alguns minutos

contemplando e misturando

lembranças e distâncias

na ausência de palavras

bem pouco antes

do adormecer.

Depois nossos olhos se fechavam.

Éramos iguais até novo amanhecer.

E não sei o que Deus fazia enquanto dormíamos,

além de nos esquecer e de não existir.


Depois o filho mais novo me ligou

e disse que havia se cortado na escola.

E eu perguntei, perguntei, perguntei.

E ele disse que estava doendo até agora.

E eu senti uma breve dor infinita.

E ele não queria injeção.

E eu pensei no sangue que é dele e meu.

E não entendi por que as coisas de sangue

são tão intensamente sentidas.

E muitos pensamentos sangraram dentro de mim.


Depois o pai olhava fixo

a moça da novela.

E então disse que ela estudara com ele.

E eu me assustei.

Ele disse que foi no ginásio.

E tudo isso era inédito.

Até em sonho era inédito.

E eu desejei ser igual a ele

e sucumbir aos mais doces delírios.

E a moça era tão linda e tão gostosa.

E o pai parecia tão feliz.

E a moça nunca soube dessa história.


Depois o filho mais velho

disse que não estava ficando

com nenhuma daquelas baixinhas da sala.

E eu sabia que era mentira.

E que homens altos gostam de baixinhas.

E que baixinhas gostam de homens.

E que a mentira é hereditária.

E eu mostrei a ele uma camisinha.

E ele fingiu naturalidade.

E eu lembrei de mim,

sofrendo, sem naturalidade.

E eu lembrei que o pai era de outro tempo.

O tempo do pai era feito de certezas

e de sexo inseguro.

E que o filho era de outro tempo também,

o tempo da facilidade e do sexo plural.

E que eu era de um tempo

de geminais certezas incertas.


Depois o pai disse, autoritário,

que eu precisava de exercício.

Faço 450 alongamentos todo dia, disse ele.

Fingi acreditar:

foi mesmo, pai?

Ele me ensinou a não mentir,

mas não pude resistir

e prometi o que não iria cumprir.

Ele ficou no feliz papel

de pai doutrinador.

Eu deveria alongar o corpo.

Mas ele, o pai, não sabia

que eu deveria alongar

na verdade

a minha vida.

Eu lamentei por ele... e ele, sem saber, por mim.

E Deus lamentou por nós dois.


Depois fiquei sozinho

nos umbrais do meu tempo.

E vi que eu era apenas

uma estrada do destino

ligando o pai em seus últimos passos

aos filhos em seus primeiros abraços.


E que no meio do caminho

não havia nenhuma pedra.