Fome
Duas mãos dispostas
em castiçal simetria
sobre delicada
e velha anatomia.
Um olhar receptivo,
longo em demasia,
a seguir na mesa
antiga e suja estria.
Alma em jardins a rastejar,
dedos estendidos ao céu,
ao chão a fronte a deitar.
Juntam-se as mãos
e se comprazem
na plena ansiedade.
O coração sem ter tido
o tempo para o sentido.
Esquecida a oração,
tem-se apenas a pulsão.
A esquerda desliza suave
rumo ao papel dormido.
A direita segue cega
à caneta emudecida.
E a vontade é exposta,
ausente de verdades,
meio amarela, mofada,
mas quase quase bela.
A caneta paira,
temendo e desejando
o papel envelhecido,
o vazio a ser vencido,
o desejo de ter sido,
o gesto todo ido.
Rabiscos de casinhas,
pernas bem fininhas,
um sol em preto e branco,
nada mais nos cantos.
E a caneta mecânica
lambe com reverência
a langorosa imaginação.
Chegada a agonia,
a hora amorosa
da feliz escrita
é toda tomada de distratos
e logo então delongada.
O papel continua vazio
sob as duas mãos postadas.