Eterno menino


Um cachorro, um pardal e uma barata.

Um menino ali, na memória.

Na memória do menino.


Ao contrário, eu temia o cachorro,

ele lambia os pés que não pareciam meus

e as mãos só minhas, quase trêmulas.

Incomodava-me aquele sentimento gelado

de temer seus dentes em minhas carnes.

Incomodava-me aquele olhar

excessivamente carinhoso

e perigosamente submisso.


O pardal pousava no muro,

dia há pouco amanhecido,

e meus olhos fixos e tranquilos

esqueciam-se da infância

nos olhos do pardal.

E ele me era totalmente impossível.

E eu o queria pela impossibilidade,

sem receio algum de ser bicado,

já que nunca o alcançaria.


E então a barata,

a víbora imaginária,

a madrasta do medo,

em mim toda podre,

em mim toda suja,

em mim toda parte de minhas partes,

em mim a vingança do Pai Eterno,

em mim o prazer se desfazendo,

em mim o gozo tomado de medo,

em mim o pecado de ser ateu,

em mim as asas me castrando,

em mim o odor me sufocando,

em mim, mas não só em mim,

a coisa indizível

dita pequena e bruta

barata

numa dor tão... barata.

E enquanto eu processava

tudo isso e mais algumas

patinhas e patavinas encarnadas,

tateando algum tipo de angústia

de uma dor avermelhada,

transitando quase embriagado

entre proibições desconhecidas

e aprovações de pronto refutadas,

ela ainda passeava rápida e esquivamente

por entre meus biscoitos recheados.


E nunca entendi o medo do cachorro,

o desejo pelo pardal

e o terror que ela me traz.


Tudo coisa de menino.


O cachorro envelheceu, calou-se.

Consigo levou parte do meu medo,

meu mínimo medo de menino.

O pardal sumiu e os anos se passaram.

O pardal permaneceu lindo e lépido

nos lentos lamentos das lembranças.

Já a barata, matei-a com incomensurável pavor.


Pena não ter morrido, o menino.