Não viverás
1
Não viverás
pelos teus olhos
de amor.
Casas serão erguidas,
talvez jardins e crianças
existam
sem os teus olhos.
Teus sonhos se porão
à margem da tua
história,
caminho desesperado
de pouca luz
e de solidão.
Não viverás
pelos olhos
perdidos
no teu amor.
Não viverás
pelo amor
banido
dos teus olhos.
2
Não viverás
pelos jardins
das tuas imagens.
Esquecerás
o rosto de Clarice,
estranho amor
à clandestina felicidade
das palavras.
Serás corpo
que desaba
e docemente
esmaga
as flores que ladeiam
teu coração.
Não viverás
pelos jardins
inventados
nas tuas imagens.
Não viverás
pelas imagens
plantadas
no teu jardim.
3
Não viverás
pela voz
da tua dor.
Antes, o sol,
o medo,
a cor dos teus olhos
devastados
na inércia
do teu amor.
Ouvirás palavras
desordenadamente,
vindas de todas as lacunas
da tua infância,
do princípio
da tua dor universal.
Não viverás
pela voz
modulada
na tua dor.
Não viverás
pela dor
acariciada
na tua voz.
4
Não viverás
pela morte
da tua poesia.
Teus olhos não estarão,
como em outro poema,
repletos de água e sal,
nem haverá apenas,
sequer ou qualquer
talvez.
Drummond está morto,
e não haverá
saudade de ti mesmo,
da tua solidão,
a sós e a esmo,
a anos-luz daquela
canção de existir
num corpo qualquer.
Não viverás
pela morte
anunciada
da tua poesia.
Não viverás
pela poesia
roubada
da tua morte.
5
Não viverás
pelo fim de século
da tua razão.
Enterrarás contigo
o pálido ondular
da tua lógica poética,
da tua prosa partida,
das tuas palavras mortas.
Ao amanhecer trarás
os olhos em chamas,
exaustos então
do teu último sopro
de poesia e dor.
Não viverás
pelo fim de século
escurecido
na tua razão.
Não viverás
pela razão
expandida
no teu fim de século.
6
Não viverás
pelas noites
do teu corpo.
Terás o prazer
suprimido
no vasto esquecimento
de todas as mulheres
das tuas noites.
Beijo, estranha obsessão
por silêncio molhado
de desejo,
refúgio aberto
da grande paixão
para viver
os últimos dias de solidão.
Não viverás
pelas noites
nascidas
no teu corpo.
Não viverás
pelo corpo
devorado
nas tuas noites.
7
Não viverás
pela pequenez
da tua arte.
Teus versos
não serão lembrados.
Fenecerão como estrelinhas
que os olhos não veem
de onde vêm,
para onde vão ou
por quê se escondem
de todos os olhares do mundo.
Levarás algumas
palavras
e não te esquecerás
que no mundo há
homens mortos que narram
o passeio dos vivos.
Não viverás
pela pequenez
mostrada
na tua arte.
Não viverás
pela arte
esquecida
na tua pequenez.
8
Não viverás
pelo cadáver
da tua poesia.
Ficará avulso,
em folhas soltas,
aguardando o prazo legal
do esquecimento,
do improvisado enterro
de cada verso,
o prazo legal
do inútil julgamento
de cada metáfora.
Teu esquecimento sobreviverá
à breve lembrança do teu existir.
E, todo pó,
todo matéria íntegra
De Deus,
serás lembrado por
teu pai, tua mãe, teu irmão.
E toda poesia,
toda ideia desenganada de ti
será esquecida pelos homens
do hoje, do amanhã, do fim.
Não viverás
pelo cadáver
congelado
na tua poesia.
Não viverás
pela poesia
diluída
no teu cadáver.
9
Não viverás
pelas manhãs
do teu desespero.
Colocarás diante de Deus
teu riso amedrontado,
espelho multifacetado
de uma mesma dor,
código ilegível
de um só amor.
E um grande silêncio
virá de Deus.
Ao grande balé das alucinações,
sucederá o vazio
dos teus olhos,
ainda abertos e infelizes,
espelhos quebrados
da tua silenciosa
ira.
Não viverás
pelas manhãs
embaçadas
no teu desespero.
Não viverás
pelo desespero
eternizado
nas tuas manhãs.
10
Não viverás
pela poesia
da tua morte.
Escreverás no tempo
as marcas da tua ausência.
E ninguém saberá
que houve na vida
um velho e falso lírico
egoisticamente esquecido
por si mesmo.
O último poema
morrerá
nas densas margens
do teu sangue,
distante do épico bailar da tua dor.
E não viverás
pela poesia
invocada
na tua morte.
E não viverás
pela morte
consagrada
na tua poesia.