Não suportarás


1


Não suportarás

outros ideais.

Entregarás ao mundo

os maus poemas

da tua suposta arte.

Haverá rugidos e imprecações

dos quatro cantos

do amanhã.


E em cada poema

deixarás o testemunho

da tua alienação,

do restrito mundo interior

ao qual te abandonaste.

Maus poetas do mundo,

uni-vos,

para escrever o fim

da vossa poesia!


Não suportarás

outros ideais

destituídos

da tua estética.


Não suportarás

outra estética

destituída

dos teus ideais.


2


Não suportarás

outros poemas.

Mas prorrogarás

o ponto final,

usando reticências

e falsos deslumbramentos.


Abandonarás todas as palavras

e versos

curtos,

para que a poesia siga

o curso normal

e a incansável fuga

de ti.


Não suportarás

outros poemas

deformados

na tua ilusão.


Não suportarás

outras ilusões

deformadas

nos teus poemas.


3


Não suportarás

outros livros.

Por algumas eternidades

serás o amante,

o estrangeiro,

a mãe das dores do mundo,

O Zaratustra da metamorfose,

um Karamazov,

um Brás Cubas,

um Hamlet.


Sentirás a insustentável leveza do ser

em vidas secas,

em ignorãças,

nas flores do mal,

na felicidade clandestina

da rosa do povo.


Não suportarás

outros livros

destinados

aos teus olhos.


Não suportarás

outros olhos

destinados

aos teus livros.


4


Não suportarás

outro existir.

Sairás inocentemente

feliz,

banhado, enxuto e vestido

sob os olhos doces

de alguma Maria.


Do cansaço de existir

retirarás teu corpo,

deixando a qualquer outro

a lição para não se seguir.

Desistirás da impossível rima

de viver e ser feliz.


Não suportarás

outro existir

cansado

do teu caminhar.


Não suportarás

outro caminhar

cansado

do teu existir.


5


Não suportarás

outros amigos.

Levarás contigo

todos os agradecimentos

e todos os perdões

que não deixaste

fazerem-se conhecer.


Beberás a última cerveja

e lerás o último poema,

lembrando de cada rosto

envelhecido no teu tempo,

compreendido no teu silêncio,

reinventado no teu olhar.


Não suportarás

outros amigos

desobrigados

de te esperar.


Não suportarás

outro esperar

desobrigado

dos teus amigos.


6


Não suportarás

outro trabalho.

Cairás na suave inércia

de um mundo silencioso.

Estarás fora do tempo

das horas que te consomem.

Morrerás por umas mil vezes mais

se te lembrares de ti mesmo.


Não terás salário, crachá ou birô.

Procurarás um colega

para falar do ontem

e te lembrarás que não há.

Todas as glórias do esquecimento

o amanhã a ti trará.


Não suportarás

outro trabalho

escravo

do teu tempo.


Não suportarás

outro tempo

escravo

do teu trabalho.


7


Não suportarás

outras mulheres.

Esquecerás o riso

e todos os olhares:

maliciosos em algumas,

assustados em outras,

piedosos em algumas outras.


E nada mais acontecerá

no teu coração

depois dessa tristeza infinita

por aquela que já é

tua última paixão.

E nada mais no teu coração

acontecerá.


Não suportarás

outras mulheres

deixadas

no teu coração.


Não suportarás

outro coração

deixado

às tuas mulheres.


8


Não suportarás

outros filmes.

No verão de 42

(quando a liberdade era azul

e Jivago caminhava

sob as luzes da cidade,

em interiores),

o esplendor na relva.


E em Casablanca,

sob chuvas de verão,

Dona Flor não viu

o porteiro da noite,

nem o taxi driver

que sussurrava:

não amarás,

pois assim caminha a humanidade.


Não suportarás

outros filmes

dirigidos

às tuas ilusões.


Não suportarás

outras ilusões

dirigidas

aos teus filmes.


9


Não suportarás

outra vida.

Deixa-la-ás num segundo.

o Apocalipse não se antecipará,

e serás privado do anoitecer

de todas as coisas.


Dirás teu nome

em voz alta

para o obsoleto cadastro

da saudade.

E o mundo explodirá

sua normalidade

em luz e cores,

sem os teus olhos tristes.


Não suportarás

outra vida

moldada

para teu desespero.


Não suportarás

outro desespero

moldado

para tua vida.


10


Não suportarás

outro nascer.

Levarás sobras

de cada tristeza

conquistada

e de alguma alegria

perdida.


Inventarás outras imagens:

um corpo saudável,

isento de chagas;

um coração em paz,

isento de angústias;

uma nova inércia

isenta de morte.


Não suportarás

outro nascer

vinculado

à tua morte.


Não suportarás

outra morte

vinculada

ao teu nascer.