Não amarás
1
Não amarás
pelo hoje.
Tua vida,
repleta de horários,
não cabe
no quadro branco
onde o amor repousa.
Talvez pelo ontem
que moldou esse
teu rosto,
mais triste,
mais livre
de tempo.
Não amarás
pelo sempre
que existe
em cada hoje.
Não amarás
pelo hoje
que existe
em cada sempre.
2
Não amarás
pela saudade.
Desabou o corpo
e estendido se mostrou
em toda a nudez
da alma.
Teus olhos morreram
naqueles olhos
fechados e felizes
pelo descanso da vida.
O perfume das pétalas
se deixou encantar
sob teu corpo,
surgindo em demasia
a dor do ainda,
do eterno continuar
que foge
e se esconde
sob tuas lágrimas
de água e sal.
Não amarás
pelo corpo
que se guarda
em cada saudade.
Não amarás
pela saudade
que se guarda
em cada corpo.
3
Não amarás
pela infância.
"Adeus, Papai do Céu,
reencontrarei teus olhos
após o fiel cumprimento
de minha fúnebre odisseia.
Guarda meus outros gigantes.
Crescerei e terei força
para cuidar dos nossos palácios,
das camas, dos lustres, dos tapetes
e de todas as paredes
que a ti convergem."
Caminharás, passo a passo,
(sob o olhar do teu Deus)
sumo à infância,
onde procurarás
todos os gigantes,
sobretudo teu Deus.
E esperarás na escuridão.
E verás:
o morrer da tua poesia,
a poesia do teu morrer.
Não amarás
pelos gigantes
que constroem
cada infância.
Não amarás
pela infância
que constrói
cada gigante.
4
Não amarás
pela fome.
Teu corpo e tua alma
chegarão às bordas
do coração da humanidade.
E terás fome,
de pão, de justiça e de beleza.
E não mais terás
explicação para a vida.
Vida que se vive
sob a cruz
de não ter sonhos de sempre
morrer para encontrar os antigos
que foram poupados
da estranha ternura dos teus olhos
e da famigerada fome do teu coração.
Não amarás
pela cruz
que se esconde
em cada fome.
Não amarás
pela fome
que se esconde
em cada cruz.
5
Não amarás
pelo destino.
O último poema,
Esqueceram de dizê-lo
na tua presença.
Deixaram palavras
soltas
para moldar
tua indignação
e tua trágica alegria
em continuar,
viver até não mais
e esquecer,
e perdoar.
E te cansarás
de sofrer em demasia,
de escrever o sofrimento
dos teus olhos,
escrever em pensamentos
a história universal
da tua dor.
E de depois chorar,
como um infante,
chorar.
Não amarás
pelo cansaço
que repousa
em cada destino.
Não amarás
pelo destino
que repousa
em cada cansaço.
6
Não amarás
pelo verbo.
No princípio havia
o desejo
e muitas garrafas vazias.
Teu corpo estúpido
não mais suporta
a embriaguez do teu amor,
a cortina de lágrimas
dos teus olhos.
O que virá também
não será suportado.
E só haverá flores
mortas,
poemas conjugados
ao abandono da ternura
de encenar tua solidão
numa página em branco,
numa mulher nua,
num jardim qualquer
da vida.
Não amarás
pela embriaguez
que rege
cada verbo.
Não amarás
pelo verbo
que rege
cada embriaguez.
7
Não amarás
pela poesia.
Tuas palavras estarão
libertas então
da tua verdadeira dor.
E procurarás sentido
nas palavras simples.
E haverá silêncio.
Tua poesia não terá sentido,
e tua vida será normal.
Apenas te será estranho
o teu sofrer
por um rosto,
um olhar,
um corpo público
dentro da tua dor privada.
Não amarás
pelo sofrer
que se derrama
em cada poesia.
Não amarás
pela poesia
que se derrama
em cada sofrer.
8
Não amarás
pelo verso.
Mais além da imperfeição
habita tua poesia surda,
teu cantar úmido
na árida inspiração.
Poemas despedaçados
em linhas curtas,
inertes na brevidade
desse quase monólogo
do teu amor.
O próximo passo é parar,
escrever: estou morto !
Teu fim está
ancorado
em páginas margeadas
de poemas silenciosos.
Não amarás
pela inutilidade
que compõe
cada verso.
Não amarás
pelo verso
que compõe
cada inutilidade.
9
Não amarás
pelo morrer.
Esse corpo estendido
sobre o teu
e esse olhar infinito
isolam
teu desejo de partir
e para sempre abandonar
esse corpo que dorme
sobre o teu.
Invasão solicitada,
noites de vigília,
de se deter em lábios
que mentem, sugam e roubam
tuas palavras
trespassadas
em imagens de flores
do primeiro
e do sétimo dia
da tua mais recente morte.
Não amarás
pelo prazer
que surge
a cada morrer.
Não amarás
pelo morrer
que surge
a cada prazer.
10
Não amarás
pela estrada.
Tua presença vale menos
que tua falta,
teu jeito de não viver
e de morrer
por tantos
e em tantos
poemas que se perderam
em ti.
Teus pés em solidão,
amparos do teu frágil mundo,
sobre folhas secas pisarão,
sem rostos ao redor,
sem Deus a te seguir,
sem a mãe a te chamar,
sem ninguém para te esperar.
Não amarás
pelo abandono
que se encontra
em cada estrada.
Não amarás
pela estrada
que se encontra
em cada abandono.