Maria Alice
Maria Alice, estou aqui!
Estou aqui,
tão perto, ao lado desta cama
que não vês,
e, sem que te dês por ela,
tanto te ampara.
Estou aqui, Maria Alice,
vendo que morres
e que não existo
nos teus olhos.
Sinto, Maria Alice,
sinto o quanto me basta
para não gritar teu nome,
o quanto me gasta
imaginar que escrevo
e que existo
fora dos teus olhos.
Agora já não sei
por onde anda o sol,
já se foi (?) ou
está quase preso
a este momento,
aguardando quaisquer palavras
daqueles dias,
sem ressentimentos para contigo,
repleto de paciência,
os raios num quase-morrer-feliz
nesta tarde consagrada só a ti.
Maria Alice, eu existo naquela tarde?
Se não me sinto
de todo confuso,
vejo que existi.
E esta tarde não me parece
coisa para se dizer: "Aqui está o presente".
Vejo, sinto e confundo
todos os becos,
todos os bares,
todos os albergues
que me tiveram
e não tiveram a ti,
pois sempre estiveste
alheia e distante
do tempo em que vivi,
daquilo que, por muito tempo,
parecia coisa para se dizer: "Aqui está o presente".
Eram noites, Maria Alice, eram dias.
E, ao fim de todas as tardes,
tudo que embelezava meu tempo morria
meu poema, meu olhar, meu dia.
Ah!, Maria Alice,
vejo que não me compreendes.
se tivesses existido
naquele presente,
por verdade terias
evitado estes versos,
esta coisa sem nexos
com as grandes poesias.
E esse teu olhar, Maria Alice?
Que me dizem teus olhos?
Maria Alice, nem parece que te conheci.
Não te lembras,
mas foi a sete dias da tua morte.
Eu andava pela cidade.
Não, Maria Alice,
não vou voltar,
não vou esperar
que cada lembrança se dobre
aos meus desatinos literários.
Não mereci teus últimos dias,
tudo que, vindo do Bem e do Mal,
edificou imagens sobre mim.
Guardarei cada parte
do teu existir
para exercitar ternuras e abandonos,
caminhar solenemente sobre o medo
de não mais ter medo,
e reconstruir teus silêncios
ancorados no fundo do meu olhar.
E escrever teu nome - MARIA ALICE -,
como se tua ausência não fosse
toda a causa
dessa angústia infinita
em poder escrever.
E então retornar
aos poemas antigos,
vividos nas partes quase íntimas
de outras mulheres,
sorvidos nos antigos bares
daquele presente,
daquele que se foi
como fumaça daquele cigarro.
Ah!, Maria Alice,
não sei o que faria contigo
naquele tempo!
Se tivesse fome,
comeria teu corpo;
se tivesse sede,
beberia em tua boca;
se tivesse frio,
deitaria sob teu colo;
se tivesse sono,
dormiria sobre ti.
Ah!, Maria Alice,
e, se houvesse gênio
(e se estivesse sóbrio),
juro - juro, Maria Alice -,
juro que escreveria teu nome
como se não houvesse ausência,
como se tua existência
fosse toda a causa
dessa imensa alegria
em poder escrever
o último poema.
E haveria paz.
E eu não escreveria.
Nada de mentiras,
nada de fingimentos,
nada de esquecer certas coisas
e nada de reinventá-las
sob meu olhar.
Iria às igrejas dos homens
e agradeceria às imagens,
cantando desafinadamente
(hinos, louvores e cânticos),
pelos versos que não mais
escreveria.
E minha vida estaria
tão farta, tão rica
de si mesma...
Ah! Estou cansado!
Sinto saudade
daquele lenço,
daquele sangue,
do tanto que não me compreendi
e daquele cigarro que não fumei.
Que esperas de mim, Maria Alice?
tuas mãos estão frias,
teus olhos não me veem
enquanto estou inteiro
na umidade do meu rosto.
Na verdade, não caminhamos.
Lá embaixo há muita gente
que nunca saberá
que nos comemos, nos bebemos, nos aconchegamos
e nunca dormimos juntos.
Não caminhamos,
não existimos para a humanidade.
Somos um, somos um todo
num único esquecimento.
Somos bichos, depois, amantes.
Somos amantes, depois, bichos humanos,
bichos tristes, solitários,
bichos com destino,
bichos com saudade.
Não temos história, Maria Alice.
Só nos resta este momento de escritura,
esta autocontemplação,
este teu rosto final,
este meu rosto sem tempo,
sem reconhecimento.
Escrevo: não há, Maria Alice,
entre mim e ti,
nada aquém ou além
desse desconhecimento
torto,
lento,
mútuo.
Vejo a saudade que sinto
na saudade que houve
no fim da tua existência
naqueles páginas em que
quase morri.
Vejo, nada mais.
E tu não me vês, Maria Alice.
Não me vês e morres inevitavelmente
em cada silencioso "Sinto tua falta, Maria Alice",
Morres e não me ouves.
E eu sinto tua falta, Maria Alice.
Sinto como se
eu aqui não estivesse.
Maria Alice, estou aqui!