Coisa morta



1


De tudo que fizeram de mim,

nada haverá de passar de silêncio,

de palavra vazia, de poesia morta.


Mas agora, eu.

Sem corpo, sem sentimentos, eu.

Sem poesia, sem teorias, eu.


Agora, eu.

Agora faço parte da vida,

da vida que, despencada,

sussurra dentro da coisa,

dentro das trevas da palavra,

dentro do caos sob o sentido.


Agora sou todo

parte desse poema,

dessa vigésima nona repetição

das mesmas palavras,

escritas num papel

branco,

com uma caneta

preta,

sob meu olhar

cansado em branco e preto.


De toda essa poesia,

restou-me esse cansaço

de trevas e de caos.


2


Mas procuro, cambaleando

por entre linhas finitas,

também escuras e confusas,

como um louco de pequenas cidades,

exausto de poucas palavras

e de breves sentidos,

como esse louco, como esse louco!,

procuro a poesia.


Vou ao cadáver da coisa morta

e lá vejo todas as minhas quedas.

Vejo, tomado de remorsos abismais,

como, em cada verso,

acreditei na poesia.


Mas procuro a poesia

dentro

da coisa morta.

Ontem,

poucas palavras havia.

Ontem, poucas.

Mas, ontem,

feliz eu me dizia.


Ontem eu não sabia

que na palavra ontem

muito de mim morria

sem nenhuma poesia.


3


E do meu tempo tenho saudade

de algumas estranhas palavras

e do amanhã que não há

em cada coisa minha.


Escrevi desesperadamente

aquelas poucas e parcas palavras

que de mim se perdiam,

sem mundo a ganhar,

como se, aqui, no que chamam de íntimo,

houvesse um sempre qualquer,

uma canção na


plataforma

da

eternidade


dos meus olhos eventualmente humanos.


Repito, repito à exaustão o silêncio,

a mágica superposição

de todas a minhas saudades.


Do meu tempo tenho saudade

da eternidade que havia

em cada poesia minha.


4


E agora há poucas,

pouquíssimas palavras

para acompanhar meu grito.


Vejo que há, também, misericórdias

guardadas, lacradas e tombadas na

doçura oculta da face de Deus.


E vejo que há grandes esperas ambulantes

na vastidão do meu silêncio,

da minha dor.


E não mais adianta

parar

e homenagens render

à letra

de velhos e novos,

de vivos e mortos.


E não mais adianta escrever,

aliterar o fingido sentir poético

do homem que sou sob o sol do meu sertão,

onde há poucas, pouquíssimas palavras

para compor meu sussurro, meu lamento, meu canto, meu grito,

minha dor, minha infinita dor.


5


No entanto, devo dizer daquele sol.

E do céu. E de nuvens.

Devo morrer em cada palavra

para que haja luz.

E sol. E céu. E nuvens.

E jamais negar

que tudo se destinava

à poesia.

E que procurei palavras

para isso dizer.

E não as achei.


6


E, sem as palavras certas,

outros palácios planejei.

Não esses, os simples de forma,

os de quartos vazios,

os próximos e dentro

de cidades alheias.

E haveria sons em cada noite,

também gestos em cada dia.

Silêncios amaciados pelo tempo

e um palco imóvel, imenso,

repleto de ... palavras.

Não essas, as simples de forma,

as de semântica nua,

as próximas e dentro

de outros palácios.

Mas houve medo.

Não esse, o de todas as noites,

o que espera o dia

para silenciar o tempo.

E eu trabalhava, eu escrevia.

E havia palácios

nos meus sonhos

e na minha solidão.

Não essa ...


7


Na verdade,

no início não havia

aquilo, aquela coisa

chamada poesia.

E era, de fato,

o que mais havia.

E o Senhor do Céu

ria

como jamais voltaria a rir

de minhas futuras alegrias.


E o Senhor do Céu

de mim escondeu

aquele rosto, aquele riso,

aquelas longínquas alegrias

tão comuns aos seus desígnios,

tão comuns aos meus dias.


E o Senhor do Céu

esqueceu que havia

(no tempo, na criança)

uma grande poesia.


8


Com ou sem poesia,

penso, logo não amo.

E amo, quando

ela deixa de ser

a vida, a dádiva ou o martírio.

Quando posso, tal criança,

brincar de escrever,

sem saber que há

um Belo

alheio a mim.

Quando posso devorar e louvar

toda a humanidade

retratada no olhar

daquela Maria,

a de camas,

a de rezas.

Então amo.

E lembro que amo,

como se ninguém houvesse

amado esta coisa, esta vida.

Ah! Amo tanto!

Amo ... logo não penso.


9


E penso:

sê feliz, criança minha,

escrevendo coisas

de um mundo não teu,

partes oblíquas de outras histórias,

cantos desalmados de estranhos amores

à inocência do eu que há em ti.


Não reclames se há

tanto para ser lido.

Lembra-te que há mais

para ser sofrido

sem poesia alguma.


Sê mais feliz,

não escrevendo.


10


Porque sonhar não basta

a quem traz nos olhos

a morte da poesia.

Melhor é abraçar-se

às pedras do caminho

e nos fachos de luz

quedar-se em silêncio,

destilar-se nos intervalos

das palavras

que sugerem a poesia morta

dos olhos

que sonham o que não basta.