Monólogo do poema ensanguentado


Não tive pai violento e distante,

nem mãe ocupada e indiferente.

Mas desde os primórdios

da antiga idade

fui sempre benquisto,

salvo por algum cego tirano,

que depois cedeu

e fez-me aliado seu.

Cuidaram de meu corpo,

dando-lhe forma diversa,

voz, ritmo e mistério.

E puseram-se a cantar

tragédias e louvores,

comédias e favores.

Os homens de poesia tinham tempo

desmedido e bem usado,

e poucos eram os homens naqueles dias,

menos ainda os de poesia.

Tinham tempo e ociosidade,

motivos muitos e curiosidade

para o mundo descrever,

para os deuses enaltecer,

para a morte entender.

E todos me conheciam de ouvido

e me apreciavam em tablados.

E se houve um dia um Homero,

por que não há mais esmero?

Mas hoje queria apenas

voltar a tenra idade,

quando os poucos poetas

tinham mais conhecimento

e muito menos vaidade.

E não havia vocábulo tanto

quando me iniciaram no canto.

Usavam tinta com qualquer galho formoso,

e era só acompanhar o disposto.

E me citavam em altas vozes nas ruas, praças e palácios.


Por que me quebram os ossos,

por que me quebram os versos?

Assim, assim, tão alheios,

assim, assim, tão dispersos?


[Vem, poeta menino,

refaz o meu destino,

cuida bem do meu verso,

faz-me um universo.]


Nasci para espalhar encanto, música e espanto.

E por três mil anos cumpri meu destino.

Das cortes orientais da antiguidade

aos campos feudais da média idade,

dispersaram-me em versos e filosofias

para em segredo sustarem a alegria.

Mas nas ruas sujas ainda havia

heranças de meus antigos dias.

E assim usaram-me para tudo na vida.

Fui mundano, nobre e até mesmo divino.

Fui luz em tempos de escuridão,

fui a mais alta manifestação

em tempos de proibição.

Ainda falam mal das prostitutas,

miseráveis e pobres arquitetas

de paixões e de separações.

Fui mais amado e violentado que elas.

E nunca reclamei, nem pagas recebi.

Tive cafetinas e cafetões,

ricos, meia-boca e pobres ladrões,

e todos uns trocados ganharam

à custa dos poetas que vida me davam.

Sim, houve sopro e tinta e papel.

E o verbo se fez uma vez mais.

Primeiro para cantos e coros,

depois para esconder decoros.

E se houve um dia um Dante,

por que cá estou agonizante?

E hoje somente

recebo vida de gente

que recita contente

apenas verso demente

para a morte celebrar.

Morte vária: a tristeza, a partida, a dor, a saudade, o vazio.

O vazio é bem mais recente,

apesar de das mortes ser precedente.


Por que me quebram os ossos,

por que me quebram os versos?

Assim, assim, tão alheios,

assim, assim, tão dispersos?


[Vem, ferrenho poeta,

faz-te em mim um esteta,

reconta minha história

para uma nova glória.]


Os poetas de todas as bandas do mundo

escreveram em, da, sobre e para a minha existência,

amando-me sem favor,

com promessas de eterno amor,

e por mim sendo amados

apesar da minha dor.

Dos maiores teatros

aos menores palácios,

fiz-me presente em cada eu

presente na moderna idade.

Sob novos deleites no velho mundo,

recriaram minha epopeia grandiosamente.

Na Bretanha, em Portugal e na Espanha,

elevaram-me a alturas

nunca dantes nem depois

alcançadas ou sonhadas.

Asseguraram-me da eternidade

da minha renascida divindade.

E fizeram-me acreditar no sempre.

Mas um dia o sempre morreu.

Guardem bem essa data.

E se houve um dia um Camões,

por que hoje só há emoções?

E os poetas precisaram produzir-me

com prazo de validade, etiqueta e código de barra.

E agora só sirvo

se puder ser vendido.

E muitíssimo bem vendido!

Antes a pena com que me teciam

e me formavam inteiro e elegante

era carícia das mãos do meu criador.

Hoje batem, quase esmurram

os teclados do computador

para produzirem um reles

e pálido rascunho do que sou.

A música separou-se de mim

e hoje segue brilhante carreira solo.

O encanto exilou-se de mim

e hoje sobrevive muito bem

na pintura, na escultura e noutras artes.

Restou o espanto.

Só ele, lépido e misterioso.


Por que me quebram os ossos,

por que me quebram os versos?

Assim, assim, tão alheios,

assim, assim, tão dispersos?


[Vem, meu malabarista,

textua como artista,

entoa belo canto

e dá-me teu encanto.]


Qualquer um pode me fazer.

Essa dádiva de romântica idade

deu asas a qualquer emotividade.

E então tudo passou a ser permitido,

tendo ou não Deus morrido.

Imagino que me veem

tal esdrúxulo bolo caseiro.

Cada um põe ingredientes

a bel e sádico prazer.

Bolo qualquer, de maçã ou de maracujá.

Sem fermento é a moda que há.

Mas nada sabem de mim.

Sabem mais sobre o bóson de Higgs

que sobre minhas carências.

Confundem-me recorrentemente

com minha irmã prosa,

ou com frases de efeito,

ou com as artes plásticas,

ou ainda com artes de qualquer feitio.

A tinta que usavam era externa

e integrava-se à minha carne.

E se houve um dia um Baudelaire,

por que hoje todo verso poesia é?

Agora a tinta é interna, fictícia, virtual.

E meu sangue jorra e se dilui

em versos e estrofes sem cadência,

em semânticas sem coerência,

nascidas de rudes marteladas, sem clemência,

tal estes versos que segues com paciência.

Meu sangue está em toda a página,

até no vazio do branco

e no layout de impressão.


Por que me quebram os ossos,

por que me quebram os versos?

Assim, assim, tão alheios,

assim, assim, tão dispersos?


[Vem, pacato ansioso,

chega-me venturoso,

de veste reluzente

e dá-me a toda gente.]


Não sei se hoje me amam,

mas sei que, (depois, ou durante)

de tanto me baterem,

já não sei quem sou,

por que aqui estou

e para onde vou

depois que o sempre se acabou.

Este que ora me conduz

não difere dos demais.

Promete e me seduz,

mas nunca, jamais faz.

Faz monólogo, nada mais.

Coisa que não o sou

e recuso-me a sê-lo,

é bom que se diga,

com ou sem fadiga.

Pensa ele que faz o novo,

mas, ah! coitado!, tá tudo lá atrás.

Minimalista ou etnopoético,

neobarroco ou hermético,

tá tudo no mesmo enfado

de existir displicentemente.

Este autor também mente,

fere minha carne fundo

e faz-me sangrar no mundo.

Não percebe o texto todo ensanguentado

e as lágrimas pontilhadas de aguado.

E às vezes me pergunto

o que farei na vida

se não mais existo,

mas ainda persisto,

já que imortal o sou,

querendo ou não

fazer parte disto.


Por que me quebram os ossos,

por que me quebram os versos?

Assim, assim, tão alheios,

assim, assim, tão dispersos?


[Vem, derradeiro arqueiro,

cintila por inteiro,

ilumina o final

deste escrito banal.]